Traído pela noite


Descompromissado. Muito descompromissado. Desacreditado nas leis do relacionamento e completamente incerto na vida. Prefiro resumir tudo em uma única noite do que deixar a porta entreaberta para continuar na segunda, na terceira, e ao amanhecer, eu acabar apaixonado. Tenho trauma de paixão. O amor no meu mundo está trancado em um baú no qual eu fiz questão de dar um fim na chave. Mas o motivo de eu estar me descrevendo nessas linhas apagadas de uma folha amarelada, é outro. Aliás, é outra. Outra mulher que me atraiu na noite anterior. Outra mulher que colou os seus lábios nos meus. Outra mulher que dividiu uma cama comigo. Mas que, se diferenciou de todas as outras. E isso está me perturbando desde que me despedi sem prometer um reencontro. 

Comparada a todas as outras, ela não me atraiu pelo meu apelo sexual. Mas sim, pelo sorriso estampado no rosto que faziam seus olhos pequenos imitarem os de japoneses. Comparada a todas as bocas, a sua era mais quente, seu hálito era mais gostoso e o seu beijo era enlouquecedor. Mudava o seu efeito como as estações do ano, uma hora era como o inverno, gelado em virtude da bebida com gelo, mas logo se fazia quente como verão, em seguida lento como as folhas que caem das árvores no outono, e por fim era encantador como a primavera. 

Meu Deus, que mulher é essa? Dona de pescoço com aroma adocicado, trajando uma blusa branca com decote nada vulgar, porém bastante sedutor e uma calça jeans preta colada a sua perna bem desenhada e equilibrada por um par de saltos que entregava a sua baixa estatura. Delicada ao falar, leve ao dançar e assassina de corações fracos com uma piscadinha que me tirava do sério. 

Terminamos a noite em sua casa, banquei o irresponsável ao dirigir com um alto teor alcoólico no sangue, mas era por uma boa causa. Uma linda causa. A moça delicada que eu conhecera na festa ficou no lado de fora do seu quarto, e ao entrarmos, ela ativou o modo selvagem. O que foi mais do que surpreendente para mim, não que isso seja algo ruim. Jamais. Enquanto eu sentia suas unhas marcarem as minhas costas, além do prazer do momento eu pude sentir algo diferente, algo que não havia acontecido em outras situações parecidas. Eu estava nervoso, sentia algo gelado dentro de mim. Parecia que eu estava prestes a ganhar um prêmio e ter que fazer um discurso na frente de milhares de pessoas. O que será que estava acontecendo comigo? 

Após trocarmos inúmeros beijos embaixo do chuveiro – o que é algo que eu recomendo a todos – voltamos para a cama. Em poucos minutos a moça dormiu nos meus braços sem antes me desejar uma boa noite. E mais uma vez algo que não havia acontecido antes, aconteceu. Eu gostei. E sorri. E em seguida murmurei. 

Convenci-me de que eu estava confrontando todas as minhas regras contra o amor. Cheguei a conclusão de que estava abrindo a porta para a paixão e brincando com o destino. Levantei-me. Vesti minha calça e, ao encaixar os meus dois braços nas mangas da minha blusa azul marinho, voltei a admira-la que por sua vez dormia como uma princesa. Imóvel, calma, e limpa de toda aquela maquiagem. Bem mais linda sem, inclusive. Fiquei observando-a por algum tempo até que finalmente vesti a blusa por completa. Tentei sair escondido, como um ladrão. Sendo um completo covarde, eu sei. Mas falhei. Fui interrompido por uma voz rouca e sonolenta. 

- Aonde você vai? – dizia ela.
- Embora – respondi.
- Essa hora? – disse ela.
- Sim, essa é a hora. – retruquei.
- De quê? – perguntou.
- De partir – respondi.
- Como assim? Para onde? – perguntou.
- Para o meu mundo onde só cabe um – retruquei.
- Não estou te entendendo, juro. – disse ela.
- Não é para entender, mas agora eu tenho que ir. Se não, acabarei ficando tempo demais e sinceramente, não é assim que deve que ser. 
- Tudo bem, não nem vai se despedir? – sugeriu.
Sorri sem descolar os lábios, caminhei até a sua direção e dei-lhe um beijo na testa. Ela então sorriu e deu uma piscadinha. A tal piscadinha. Ai meu Deus, preciso ir antes que seja tarde demais.
- Quando iremos nos ver novamente? – perguntou quando eu coloquei um pé para fora de seu quarto.
- Não sabemos. – respondi e fechei a porta.

Durante todo o caminho para casa vim balançando a cabeça fazendo um movimento negativo. Não podia ser. Não pode ser, mas acho que é. Acho que fui enganado pela noite. Traído pelo meu próprio autocontrole. Não sei o que está havendo, mas juro que desta vez senti muita vontade de ser um cara compromissado. De dar um rumo à minha vida. De arrombar o baú que guarda todo o meu amor. Senti vontade de me entregar a uma única pessoa na qual me fez sentir como um homem além do prazer carnal. Mas eu não posso. Eu sou um cafajeste formado em não me amarrar. Por isso preferi não amanhecer ao seu lado. Uma mulher ao amanhecer tem o poder de ser a pessoa mais encantadora do mundo com sorrisos matutinos e com seus cabelos desarrumados, tendem a ser mais sexys do que o normal, também.

Enfim, acho que consegui fugir do laço da paixão mais uma vez. Acho. Assim como também acho que não sei quando iremos nos encontrar novamente.


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